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quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Documentos "gestalt" do Vaticano II

A multi-estabilidade/
Várias hermenêuticas.
"Hæc Ecclesia, in hoc mundo ut societas constituta et ordinata, 
subsistit in Ecclesia catholica,..."

Li um livro não publicado do prof. Fedeli (online aqui) que trata das raízes filosóficas e teológicas do Concílio Vaticano II mostrando como as ideias mais influentes do final do século XIX e início do século XX estavam presente nesse polêmico concílio. Em suma trata de como a fenomenologia de Husserl foi usada para mesclar e estabilizar a doutrina católica com o pensamento modernista no período do Vaticano II. Entre muitas coisas a que me chamou a atenção foi o ramo de crítica literária desenvolvida pelo alemão Hans-Georg Gadamer (1900-2002) no qual, trabalhando sobre o termo 'hermenêutica', se conclui a mais absoluta arbitrariedade entre leituras chegando ao ponto de se pensar que nem mesmo o autor sabe o que escreveu.

O polêmico "subsistit in" no lugar de "est".
A carta coringa tradicional e progressista. 
Nesta postagem busco ensaiar o paralelo entre a gestalt e essa crítica literária aplicada no texto do Vaticano II. Para a fenomenologia a escola gestáltica possui um grande valor por ressaltar a multi-estabilidade das imagens ou produção de fenômenos sem se revelar ser algum. Ao invés de tratar como brincadeira de ilusão de óptica ou como "doutrina de língua bífida", dúbia, a ideia é trabalhada como a panaceia ecumênica onde posso ver o cálice e o povo na mesma imagem. Desenvolvendo um pouco mais o princípio posso encenar doutrina verdadeira, "Este é o cálice de Meu sangue", com doutrina falsa, "Ele está no meio de nós" sem definir ao certo qual experiência é verdadeira, restaria então à hermenêutica de cada indivíduo interpretá-la, lembrando a Pascendi, seria a ação da inteligência reforçadora do sentimento produzido.

Como bem estudamos na Pascendi de S.Pio X, o Sumo Pontífice nos ancora em sã doutrina tomista e denuncia os erros dos modernistas especialmente quanto à importância que eles dão à experiência. Em suma: o Agnosticismo induz à negação da ontologia (da transcendência do fenômeno, do Ser) nos dizendo que apenas podemos conhecer fenômenos, esses fenômenos seriam possíveis de conhecer pela experiência pessoal que, tendo cada um uma diversa, cada interpretação seria válida e nunca errada, nossa inteligência atuaria em ler o sentimento produzido jamais se voltando ao ser real. Sendo assim a imagem gestalt nos produz dois ou mais fenômenos não sendo ser nenhum, nem cálice, nem povo, apenas experiência, o "documento gestáltico" seria idêntico, dependeria da intenção de cada indivíduo:

"...todas as interpretações de um texto resultam da consciência pessoal do leitor e não simplesmente do texto tal qual ele aparece. Gadamer ainda admite que seja possível uma certa aproximação da verdade do ser, não se conseguindo, porém, jamais alcançar o real e sua verdade ontológica plenamente... Portanto são fruto de sua experiência" (texto completo no fim do ensaio).

A intenção, termo chave na hermenêutica moderna, faria com que aquele "texto gestalt" tomasse a forma desejada pelo leitor, quase um ato de adoração ao indivíduo onde a natureza do texto se dobra a "minha vontade".

Lembro aqui de termos conciliares que são no mínimo estranhos tais como "subsistit in" da Lumen Gentium, o "germe divino" ("divinum quoddam semen") da Gaudium et spes e o enigmático "a Igreja é em Cristo como que o sacramento ou o sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo gênero humano" também da Lumen Gentium.

Na definição clássica de "a Igreja de Cristo é a Igreja Católica", no lugar de est, utilizou-se o "susbsistit in" que pivotou um "texto gestalt" do qual se entende um ortodoxo e redundante "É", como também um implícito e heterodoxo "mas também existem outras e qualquer igreja salva" tal como o padre "Joãozinho" levantou em polêmica no site Montfort em 2009.

A proclamação do "germe divino" presente em todo homem no 3 da Gaudium et spes ("divinum quoddam semen"), no qual se leva de cara um susto pelo sabor gnóstico e cabalístico que tem, é outro pivô de texto gestáltico que, por exemplo, pediu cinco minutos de explicação do padre Paulo Ricardo para dar uma interpretação razoável e católica ao que é nitidamente usado pelos gnósticos.

Esse busto é como que
um casal na rua molhada
com um cachorro deitado...
Outro efeito gestalt, e daquele de imagens complexas, é a estranhíssima definição de Igreja "como que o sacramento ou o sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo gênero humano" do 49 da Gaudium et spes ("in Christo veluti sacramentum seu signum et instrumentum intimae cum Deo unionis totiusque generis humani unitatis"). Essa quase que institui um oitavo sacramento, mas meio que compara mesclando Deus com o gênero humano, é uma das mais complicadas definições e que já rendeu páginas de estudos como esse também do prof. Fedeli: "A Eclesiologia do Vaticano II"

Como é possível de se notar até pelas palavras do padre Paulo Ricardo, é mentalidade padrão a aceitação e uso da hermenêutica moderna de Gadamer, não ha uma atenção aos danos da dubialidade em si, mas sim no teatro entre tradicionalistas e progressistas, onde cada um usa uma hermenêutica própria no drama e, na última cena, talvez conclua com um diálogo que no máximo se aproxima da realidade.

É também notável que temos uma contradição na questão de que todas as interpretações conforme os fenômenos da consciência são válidas uma vez que o Papa pede coerência à "hermenêutica da continuidade" condenando implicitamente as outras hermenêuticas. Todo o esquema "ecumênico gestaltístico" estaria condenado por ter de ser interpretado apenas do modo católico - ignore o povo e veja o cálice apenas -, isso fez de Bento XVI um bom Papa, apesar de a ilusão de óptica permanecer lá.  

Mão-pomba-violão.
Entidade que possui o caráter
modernista em sua essência.
Com este olhar na multi-estabilidade convém, para finalizar, ressaltar que a estrutura ou o estilo é então mais condenável que seu conteúdo. Por vezes, do Papa aos leigos, vemos a solicitação da boa vontade pedindo a interpretação correta do Vaticano II e coerente a tradição, de fato isso é realmente possível e é bom fazer, mas francamente é ortodoxo "afastar esse cálice", se esquivar dessa brincadeira de ilusão de óptica, da "fumaça de Satanás", tendo em vista o "cálice da antiga objetividade", de arte gótica, tomista, sem esse contraste dúbio e trapaceiro ou de névoas simbolistas. Aceitar o concílio é isso, vê-lo como pastoral e fenomenológico, ele é assim, podemos escolher afinal outras coisas, São Tomás e os concílios dogmáticos, basta esforço, é disso que precisamos.

São Tomás, rogai por nós, intensamente.

Mateus R. C. de Paula.

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Trecho da obra do prof. Fedeli (online aqui):
...

14 – A nova hermenêutica de: Hans Georg Gadamer (1900-2002)

Hans Georg Gadamer
Da Fenomenologia de Husserl e do Existencialismo nihilista de Heidegger, nasceu a Pós Modernidade. Também ela, pelo menos, por alguns de seus pensadores, recusa que o homem possa conhecer o real e a verdade.

Por isso diz Tomás Melendo:
Interessa insistir em que tudo isso se soma à crise de racionalidade que examinávamos antes entre os epistemólogos de nosso século. Por que? Porque também a pós modernidade débil implica sobretudo na anulação absoluta do sentido da verdade e de qualquer racionalidade possível. Como queria Nietzsche, tudo é falso: "simplesmente, já não existe razão alguma para imaginar um mundo verdadeiro" [Nota 206: M. HEIDEGGER, Nietzsche, ed. francesa cit., vol. II, p. 51. Apud T. Melendo, op. cit., p. 89).

A hermenêutica contemporânea de Hans-Georg Gadamer autor do livro Verdade e Método (Wahrheit und Methode) opõe-se a E. D. Hirsch (Validity in Interpretation) defendendo a tese de que o sentido de um texto objetivamente não corresponde à intenção de quem o redigiu, visto que cada leitor se une inseparavelmente ao texto que lê. Desse modo, todas as interpretações de um texto resultam da consciência pessoal do leitor e não simplesmente do texto tal qual ele aparece Gadamer ainda admite que seja possível uma certa aproximação da verdade do ser, não se conseguindo, porém, jamais alcançar o real e sua verdade ontológica plenamente.

Que se nos perdoe a longa citação abaixo de Tomás Melendo, que colocamos aqui, pela clareza de sua exposição:

“Assim o explica Pegueroles, manifestando simultaneamente as luzes e as sombras, e a peculiaridade exclusiva, da Hermenêutica:
"1. A verdade hermenêutica é uma verdade sem critério. Não há critério de verdade na hermenêutica. A beleza da Nona Sinfonia de Beethoven nem se pode verificar, nem se pode demonstrar.

"2. Como distinguir então entre a beleza e a não beleza, entre uma grande filosofia e uma filosofia sem valor? Há dois caminhos. Primeiro, a experiência. Somente um homem de muita experiência artística, filosófica… (um homem formado) será capaz de julgar com acerto. Segundo, o diálogo. Dois homens entendidos (em arte, em filosofia) é possível que cheguem a se por de acordo na verdade.

"3. A verdade hermenêutica é uma verdade sem erro. Na hermenêutica, o contrário da verdade não é o erro, mas sim a não verdade. A verdade hermenêutica se dá em uma experiência (de beleza, de valor). Ora, pois, a experiência, ou se dá, ou não se dá. Ou há experiência, ou não há experiência. Não há experiências falsas. A experiência é sempre verdadeira.
"Aquilo que viu um grande filósofo é verdade, disse alguém magistralmente. Depois, o leitor de Platão verá ou não verá essa verdade que viu Platão. Não há um Platão falso. O pedaço de chumbo dourado que eu tomo por ouro, não é ouro falso, é não ouro (Heidegger).

"4. A verdade é histórica e, portanto, finita. Está condicionada pela história e especialmente pela linguagem do leitor do texto. A hermenêutica de Gadamer afirma ao mesmo tempo, a verdade e sua finitude. O homem não conhece a verdade absoluta (Hegel), mas apenas seu modo de se dar desde sua situação. Ora bem, essa finitude é uma riqueza. Os modos de dar-se de uma grande obra de arte são infinitos. Nunca chegaremos ao termo de nossa experiência da Nona Sinfonia ou do Dom Quixote.

"5. […] Lia há pouco que na hermenêutica primeiro se dá a compreensão e, depois, a valorização do compreendido. O autor não tinha entendido nada. Essa distinção entre compreensão e crítica ou, o que dá no mesmo, entre sentido e verdade, é própria da ciência, não da filosofia (ou da hermenêutica, que é seu outro nome).
"Se compreendo Platão, me entusiasmarei com ele. Se não me diz nada é que não o compreendi. A verdade hermenêutica somente é verdade, se é verdade para mim. A verdade científica é verdade, ainda que para mim não me afete (é verdade para todos). A verdade hermenêutica somente é verdade, se me aproprio dela, se a aplico a mim.
"A verdade hermenêutica é uma verdadeira revolução. A filosofia (e a arte) não são uma ciência (como pretendeu a modernidade). E sua verdade é outra verdade. Esta nova, revolucionaria verdade a descobrem, cada um por sua conta (sempre contra a modernidade), Kierkegaard (a verdade subjetiva) e Newman (Grammar of assent), no século passado. E, no nosso, Heidegger e com ele Gadamer e Pareyson (cada um a seu modo) e a nova retórica de Perelman" 
[Nota 211- J. PEGUEROLES, "La Verdad Hermenéutica en Cuatro Palavras", in Espíritu XLIV (1995), pp. 221-222. Apud T. Melendo, op. cit., p. 93].

Roman Ingarden
Um dos discípulos importantes de Husserl e que aplicou a Fenomenologia ao estudo interpretativo de textos literários, foi o polonês Roman Ingarden, que em 1930 publicou A Obra de Arte Literária.

Ingarden se interessa em saber que é a obra literária, e o que de objetivo pode se manifestar nela. Como fenomenologista, Ingarden recusa o dilema posto na Filosofia Moderna entre objetividade e idealismo subjetivista. Como Husserl, ele escapa do dilema citado adotando a teoria da intencionalidade intelectiva da Fenomenologia de Husserl. Como explica Maria Manuela Saraiva na introdução da edição da obra citada de Ingarden em português, o ser de uma obra literária seria puramente intencional, pois que ele não seria algo autônomo, mas inteiramente da consciência que o cria por sua intencionalidade. A obra de arte literária, nascida da consciência pessoal de seu autor, é reativada e interpretada pela consciência de cada leitor dela. Portanto, toda obra de arte literária é reinterpretada por cada leitor segundo sua consciência. Desse modo, cada leitura teria uma interpretação válida. Nenhuma interpretação poderia ser excluída. Nenhuma poderia ser dita falsa. Nenhuma poderia ser dita absolutamente objetiva.

Dessas teorias vai nascer o conceito de obra aberta, tal como vai ser apresentado por Umberto Eco, em 1962.

Carlos Ceia pergunta: “Que caminho hermenêutico escolher: o sentido da obra em si mesma ou a variedade das concretizações que a obra permite? Se a opção for estritamente husserliana, a obra só se concretiza, só se torna obra escrita a partir do momento em que a lemos”
(Carlos Ceia,http://www.citadel.edu/faculty/leonard/ISER.html).

Ceia mostra ainda que um texto é uma materilaização de uma visão que o autor tem do mundo. O texto de uma obra resulta dos fenômenos de consciência do autor. Portanto são fruto de sua experiência, de sua intencionalidade intelectiva que elaborará uma tomada de cosnciência inteiramente pessoal, não objetiva.

O 'mundo' de uma obra literária não é uma realidade objetiva, mas aquilo que em alemão se denomina Lebenswelt, a realidade tal como é organizada e sentida por um indivíduo. A crítica fenomenológica focaliza a maneira pela qual o autor sente o tempo ou o espaço, ou a relação entre o eu e os outros, ou a sua percepção dos objetos materiais." (Teoria da Literatura: Uma Introdução, trad. de Waltensir Dutra, Martins Fontes, São Paulo, 1994, p. 64 apud Carlos Ceia,. http://www.citadel.edu/faculty/leonard/ISER.html).

Jauss (Hans Robert), seguindo Gadamer, julga que cada leitor, na leitura de uma obra, funde seus próprios “horizontes de percepção”—suas experiências , suas vivências--, com os do autor do texto. Haverá, segundo Jauss, uma “fusão de horizontes’. Para Jauss,
que nesse ponto segue Gadamer, compreender um texto significa ter compreendido a que pergunta ele quer responder. Para Gadamer e Jauss, compreender um texto exige a fusão dos horizontes do autor com os horizontes de recepção do leitor.( Cfr. H.R. Jauss, Pour Une Esthétique de La Réception, Gallimard, Paris, 1978, pp. 65 -66).

Também Davi Bleich considera que cada leitor dá uma interpretação pessoal na leitura que faz de uma obra. Todas as leituras feitas seriam “verdadeiras”. O autor de um texto redige sua experiência de vida. O leitor registra sua experiência de leitura.

Paul Ricoeur pensa que as obras literárias e culturais são reflexos de visões do mundo. A diversidade de interpretações dessas obras provém das diversas intencionalidades e dos diferentes métodos adotados para compreendê-las.

Todas essas teorias e doutrinas recusam a objetividade do conhecimento, caindo-se então num relativismo completo. É o que lembra Sofia Paixã ao dizer: “Assim, em última instância, essa outra dimensão entre os sujeitos a que se dá o nome de intersubjetividade contribui para abalar a concepção de uma verdade objetiva, fazendo da relatividade um processo de conhecimento, cuja utilidade provém da constante reformulação das convicções subjetivas. No campo da literatura, deixa de fazer sentido a defesa de uma única teoria baseada na objetivação absoluta do texto literário, pelo que a problematização e a discussão se apresentam como os caminhos mais viáveis para a apreensão da obra literária como um objeto eminentemente simbólico”. (Sofia Paixão, ob cit).

A aplicação dessas teorias da Hermenêutica moderna vai criar a atual polêmica sobre o real significado do Vaticano II: têm os textos do Vaticano II continuidade com o magistério do passado, ou são eles uma ruptura com a tradição da Igreja?

Bento XVI condenou a hermenêutica de ruptura adotada pela leitura dos textos do Vaticano II na linha do chamado “espírito do Concílio”. O atual Papa defendeu um leitura segundo a “letra do Concílio,” numa hermenêutica de continuidade.

Desse modo, parece que o Papa Bento XVI aceita, pelo menos em parte, as doutrinas hermenêuticas modernas, para as quais todas as leituras seriam válidas. Mas, sendo assim, Bento XVI não poderia excluir como inválida a leitura do espírito do concílio. Nem poderia afirmar que a leitura conforme a letra dos textos do Concílio seria a verdadeira. Porque, para a hermenêutia moderna, não há uma leitura objetivamente verdadeira.

Logo, no exame dos textos do Vaticano II, deve-se abandonar a teoria fenomenológica da hermenêutica moderna. Como sempre se fez, dever-se-ia comparar os textos do Vaticano II com os textos do magistério tradicional, com a doutrina de sempre. Só assim se pode evitar o relativismo hermenêutico e o caos doutrinário que envolveu a Igreja depois da adoção da Fenomenologia, essa fumaça de Satanás que penetrou no templo de Deus, obnubilando o sol da verdade católica

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